domingo, 20 de dezembro de 2009

14.2 António Luís do Amaral Branco de Paiva


148. Fotografia de António Paiva, encontrada no Espólio familiar. Reprodução de Barbara Aniello.

Figura enigmática e “injustamente esquecida” do panorama da história da arte portuguesa do século XX, António Paiva “pode considerar-se escultor do segundo modernismo, na medida em que procura contrariar padrões académicos residuais da nossa cultura ao tempo”.[1] As raríssimas fontes encontradas atestam a sua actividade de escultor e professor da Escola de Belas Artes. Nasceu em Alcácer do Sal a 12 de Fevereiro de 1926 e morreu em Lisboa a 30 de Junho de 1987. Dedicou-se desde cedo à escultura e, ainda aluno do Liceu, expôs pela primeira vez, em 1943, nos Salões de Educação Estética da Mocidade Portuguesa, onde obteve o 1º Prémio Nacional. Trabalhou depois (1944-1949) com vários mestres de escultura, nomeada­mente Barata Feyo, Canto da Maya e António Duarte. Frequentou o curso de escultura do Mestre Leopoldo de Almeida da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, matriculando-se em 1946 e em 1959 defendeu a tese com a classificação de 19 valores. Entre 1955 e 1957 foi desenhador do Museu Etnológico do Dr. Leite de Vasconcelos. Participou numa colectiva do S.N.I. (Secretariado Nacional de Informação) em 1945 e numa exposição geral de Artes Plásticas em 1951. Em 1953 tomou parte numa Exposição colectiva dos artistas Modernos e em 1956 colaborou na Exposição 30 Anos de Cultura e na Exposição de Arte Sacra na Galeria Pórtico. Participou em 1958 no Pavilhão de Portugal da Exposição de Bruxelas, onde obteve o Grande Prémio Individual de Escultura com uma obra colossal, emblemática do trabalho português de Norte a Sul, infelizmente perdida após a Exposição.


149. António Paiva, escultura para a Exposição de Bruxelas, Grande Prémio Individual, 1958. Reprodução de Barbara Aniello

No mesmo ano expôs na Galeria do Diário de Notícias. Em 1959 realizou a Exposição dos Novíssimos do SNI e de Arte Sacra no Porto. Realizou trabalhos para os paquetes Santa Maria, Vera Cruz e Infante D. Henrique. Existem vários trabalhos de Arte Sacra no santuário de Fátima, na Igreja Matriz de Alcácer do Sal e na Igreja Paroquial de Águas. Realizou várias esculturas honoríficas a Vasco da Gama (Sines), à Rainha Santa Isabel (Estremoz), a Pedro Nunes (Alcácer do Sal) e a Garcia de Resende (Évora) e desenhos para a decoração de construção civil, jardins e colecções particulares.[2] Entre 1960-1962 foi professor de Desenho do Liceu Camões, renunciando ao cargo de professor eventual para abraçar o de 2º assistente, além do quadro, do 6º grupo em 1962 na Escola das Belas Artes em Lisboa, onde leccionou durante vinte e quatro anos, até 1986, recebendo a promoção a 1º assistente em 1962. Foi bolseiro do Instituto de Alta Cultura e da Fundação Calouste Gulbenkian para uma viagem de estudo a Itália. Participou em diversas exposições individuais e colectivas em Portugal. Autor de monumentos e de numerosas medalhas.[3] Um ano após se ter aposentado, o seu estado de saúde agravou-se e morreu no Hospital São Francisco Xavier em 30 de Junho de 1987.

O artista, autor dos dez baixos-relevos e da escultura cimeira do portal exotérico, tinha vinte e cinco anos quando trabalhou no projecto decorativo da Casa. Coetâneo do proprietário José Manuel, Paiva era mais jovem do que Almada, que tinha cinquenta e oito anos, e do que António Varela, que tinha quarenta e nove anos. Graças ao testemunho da viúva, Senhora Dª. Alice Berta Gonçalves Alves, encontrámos a notícia duma estátua que originariamente decorava o jardim da Casa: São Francisco de Assis. Infelizmente perdida, mas provavelmente ainda no acervo da família Ferrão,[4] a estátua foi publicada na revista Menina e Moça, contudo um estudo dela em barro encontra-se ainda no espólio familiar do escultor.


150. e 151. António Paiva, São Francisco de Assis, estátua em gesso publicada na capa da revista Menina e Moça, Março, 1971, nº 267 e estudo para São Francisco de Assis, espólio Paiva.

Personalidade introvertida e extremamente reservada, segundo as testemunhas vivas encontradas na minha pesquisa, António Paiva não gostava de divulgar a sua obra nem de notícias sobre si, mesmo em ocasiões oficiais. Exemplar, neste sentido, é um catálogo de Exposição colectiva, entre os raríssimos encontrados, que reporta trabalhos de obras plásticas comemorativos da obra de Hieronimus Bosch. Enquanto os outros artistas referenciam nome, morada e um curriculum resumido da própria actividade artística, ao lado da medalha cunhada pelo escultor lemos apenas: “Paiva. Vive em Lisboa”.[5] Na sua produção (que compreende obras dispersas em várias cidades do país, como Vasco da Gama em Sines, Rainha Santa Isabel em Estremoz, Grupo escultórico em Vinhais, Estátua da Justiça e Pedro Nunes em Alcácer do Sal, Garcia de Resende em Évora, Monumento aos Bombeiros em Portalegre, Grupo escultórico no Hospital e Estátua no Lar das Enfermeiras em Portalegre, Ricardo Jorge em Lisboa, Grupo escultórico no Hospital do Funchal) destacam-se terracotas para a decoração de edifícios,


152. António Paiva, São Jorge e o Dragão escultura em terracotas, não assinada, colocada num edifício na rua Guilhermina Suggia, em Lisboa. Fotografia de Barbara Aniello.[6]

esculturas de arte sacra ou comemorativa,


153. Atelier de António Paiva, gessos entre os quais estudos de Rainha Santa Isabel de Estremoz e busto para Luís Vaz de Camões. Fotografia de Barbara Aniello.

obras de criação pessoal, como estes cavalos e cavaleiros inclinados, aerodinâmicos, prestes a descolar, que na versão em gesso padecem de uma metamorfose em superfície lunar


154. e 155. António Paiva, Cavalos em madeira e gesso. Atelier Paiva. Fotografia de Barbara Aniello.

onde o tema do cavalo é o mais recorrente,


156. e 157. António Paiva, desenhos, espólio familiar. Fotografia de Barbara Aniello.

inclui algumas peças de cariz esotérico que se aproximam dos temas enfrentados no portal da Casa, como a referida medalha da árvore invertida e uma outra cunhada em 1974:


158. António Paiva, medalha comemorativa, publicada em Porfírio, José Luis, Bosch: Artistas contemporâneos e as tentações de Santo Antão, Ministério da Educação e Cultura, Lisboa, 1973.

A medalha para o 50º Aniversário da Direcção Geral dos edifícios e Monumentos Nacionais, cunhada em 1979:[7]


159. António Paiva, medalha comemorativa para o 50º Aniversário da Direcção Geral dos edifícios e Monumentos Nacionais, cunhada em 1979. Fotografia de Barbara Aniello.

A medalha para a Companhia portuguesa de Cimentos Brancos, cunhada em 1969:

160 e 161. António Paiva, medalha comemorativa para a Companhia portuguesa de Cimentos Brancos, cunhada em 1969. Fotografia de Barbara Aniello.

A iconografia do pelicano que nutre os filhos, o pavimento em mosaico, o compasso e o livro remetem para um repositório de imagens maçónicas.



162. José de Almada Negreiros, desenho preparatório para o painel do 1º piso da Casa da Rua de Alcolena. Fábrica Viúva Lamego. Publicado in Suraya Burlamaqui, Cerâmica mural portuguesa contemporânea: azulejos, placas e relevos, Quetzal editores, Lisboa, 1996, p. 37.

Analogamente à medalha, encontramos nos azulejos por baixo do barco dos amantes, enlaçados no abraço erótico, um cisne-pelicano emblema do sacrifício e imolação por amor aos outros.

O convívio entre José de Almada Negreiros, José Manuel e António Paiva é confirmado pelas testemunhas vivas encontradas.[8] Segundo a filha do escultor, o pintor visitava com frequência o atelier do pai, que se encontrava ao lado do estúdio de João Hogan e Virgílio Domingues, com os quais convivia diariamente. Uma série de arlequins dos anos ‘70-‘80, encontrada no espólio de António Paiva, testemunha a herança da lição de Almada, seu colaborador na decoração da Casa.


163. e 164. António Paiva, Arlequins, desenhos encontrados no Espólio familiar. Fotografia de Barbara Aniello.

O interesse pelas máscaras da Commedia dell’Arte é comprovado pelo grupo escultórico O teatro, realizado em 1970, como prova de agregação a Professor Efectivo na ESBAL, actualmente exposto na Faculdade. Os fatos apertados deste Arlequim e Columbina, finamente trabalhados em losangos e pintinhas, mostram as formas dos corpos, retratados em atitude lírica e dramática. Reparamos numa vontade de reunião de todas as artes: a dança, pelos fatos aderentes, a representação lírica, pela boca semi-aberta da figura feminina, o drama, pela pose da figura masculina, e a música, pelo atributo do mandolim.


165. António Paiva, O teatro, prova de agregação na ESBAL, gesso, 1970. Fotografia publicada em Memórias em Gesso, Exposição do Acervo Escultórico da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, 1996, curada por João Afra, José Miranda e José Fernandes Pereira, p. 26.

Particularmente relevante é o motivo da ocultação do vulto por meio da mão. A mão esconde os traços fisionómicos do Arlequim, fazendo as funções de máscara, enquanto a figura feminina descobre o seu rosto, mas não o mostra, porque ao retirar o seu disfarce leva o queixo ao alto e abre os lábios num canto. É como se, por baixo das suas máscaras, os actores revelassem e velassem, ao mesmo tempo, uma interioridade imperscrutável.
A essência e a natureza do homem ficam por detrás do visível, parece ensinar-nos António Paiva, que insiste no mesmo motivo em outros espaços da sua criatividade.


166. António Paiva, Escultura, atelier Paiva. Fotografia de Barbara Aniello.

[1] António Duarte, Escultor António Paiva, op. cit., pp. 165-167.
[2] A biografia do artista foi reconstruída essencialmente a partir da consulta dos Arquivos da Secretaria da Faculdade de Belas Artes. Agradecemos a autorização do Director da Faculdade e a ajuda imprescindível do Professor João Duarte. As restantes notícias foram retiradas do Catálogo Escultura e Desenho de António Paiva, da Galeria de exposições do Diário de Notícias, Lisboa, 1958, pp. 1-4, do qual reportamos os títulos das obras: 1 – D. Quixote «Bronze» 2 - D. Quixote «Gesso» 3 - Cabeça De Mulher «Barro Cozido» 4 - Cabeça De Velho «Bronze»,5 - Ceifeiro «Bronze» 6 - Cavaleiro «Bronze» 7 - Mulher Deitada «Bronze» 8- Homem Com Peixe «Cimento» 9 - Acrobata «Gesso» 10 - Cristo «Bronze» 11-12 - Pratos «Barro Cozido» 13 - Cabeça «Pedra» e Desenhos, em parte do outro Catálogo da XLVI Exposição de Pintura a óleo e escultura, promovida pela Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1949, onde estão referidas as obras Cabeça de rapaz (estudo) e Máscara de velho (estudo).
[3] Patrício António, A medalha portuguesa no século XX, Europália, Bruxelles, 1991, p. 92.
[4] Tivemos a notícia que provavelmente a estátua se encontraria no espólio da família Ferrão, que infelizmente ainda não autorizou a consulta.
[5] José Luis Porfírio, Bosch: Artistas contemporâneos e as tentações de Santo Antão, Ministério da Educação e Cultura, Lisboa, 1973.
[6] Este São Jorge e o Dragão faz parte de uma série de terracotas, não assinadas, colocadas na rua Guilhermina Suggia, em Lisboa, em edifícios dos anos ’50, decorados por António Paiva. Devo esta referência ao escultor Domingos Soares Branco, que testemunhou a sua execução e colocação.
[7] Cfr. infra nota n. 18.
[8] Aqui fica o meu profundo agradecimento à esposa e à filha do artista, Senhora Dª. Alice Berta Gonçalves Alves e Senhora Dª. Maria Luísa Alves de Paiva, que muito generosamente me disponibilizaram acesso ao espólio do artista.

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